Enquanto muitas comunidades do sertão sergipano ainda dependem de carros-pipa para ter água, três estudantes de escola pública criam tecnologia com quiabo que purifica água: um coagulante natural feito com mucilagem de quiabo descartado, capaz de purificar água de barreiro por apenas R$ 0,01/litro. O projeto Acendra como é chamado uniu ciência, educação integral e impacto social, sendo destaque em feiras nacionais e mostrando o poder de uma ideia simples e acessível.
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Centro de Excelência Dom Juvêncio de Britto, Canindé de São Francisco
O projeto foi criado por alunos do Centro de Excelência Dom Juvêncio de Britto, Canindé de São Francisco, um município marcado por desafios históricos quando o assunto é acesso à água potável. No coração do sertão sergipano, onde a seca ainda determina parte da rotina das comunidades, uma escola pública estadual se tornou o cenário de uma experiência que pretende mudar parte dessa realidade.
Com um olhar voltado para a ciência prática e o uso consciente de recursos locais, três estudantes decidiram investigar um caminho pouco explorado, utilizando um recurso comum no semiárido: o quiabo.
Dessa forma, estudantes criam uma tecnologia que purifica água usando restos de quiabo, mostrando como a inovação pode surgir a partir de soluções simples e acessíveis.
O surgimento da idéia de purificar água
A ideia inicial surgiu em uma das atividades pedagógicas do Ensino Médio Integral, modelo adotado pela rede estadual de ensino de Sergipe. O desafio era propor soluções reais para problemas enfrentados pelas comunidades locais. O grupo, formado pelos alunos Lucas Adib, Arthur Jorge e Anne Gabriela de Freitas, iniciou uma série de observações e entrevistas com moradores da região. O foco era a água, ou melhor, a falta dela em condições seguras para consumo. A partir dessas conversas e de referências acadêmicas sobre o uso de substâncias naturais como coagulantes, surgiu o embrião do projeto.
O que os estudantes criaram foi um sistema de purificação de água de barreiro baseado na mucilagem do quiabo descartado, uma substância gelatinosa rica em pectina. O resultado não só comprovou a eficácia do método para tornar a água mais limpa e segura, como também chamou a atenção por seu custo reduzido: apenas R$ 0,01 por litro. O projeto, batizado de Acendra, percorreu feiras científicas nacionais e internacionais, despertando debates sobre inovação, sustentabilidade e o papel da educação pública no desenvolvimento de soluções de impacto social.
A motivação do projeto em Canindé de São Francisco
A cidade de Canindé de São Francisco está situada no extremo noroeste de Sergipe, e sua população é afetada pelas características climáticas típicas do semiárido. Embora esteja próxima do Rio São Francisco, a distribuição de água tratada não é uniforme. Em muitas áreas rurais, o abastecimento é feito por carros-pipa, e a água disponível nos barreiros é barrenta, com alto índice de turbidez e risco microbiológico. A situação foi o ponto de partida para o projeto idealizado pelos alunos.
O incentivo dos estudantes para o uso do quiabo na purificação da água
Segundo dados do Instituto Água e Saneamento (IAS), boa parte da população local não tem acesso regular à água potável. Isso afeta diretamente a saúde, o bem-estar e o desenvolvimento social das comunidades. Os estudantes observaram que a água de barreiro, apesar de abundante, não é considerada própria para consumo devido ao alto teor de partículas em suspensão, coloração escura e presença de micro-organismos.
Ao identificarem esse cenário, os alunos decidiram investigar soluções viáveis que pudessem ser aplicadas diretamente pela comunidade, sem depender de sistemas industriais de tratamento. A proposta era usar algo acessível, disponível no local e que não gerasse resíduos tóxicos. A partir de estudos sobre coagulantes naturais, chegou-se à ideia do uso do quiabo, fruto amplamente cultivado na região e que frequentemente é descartado em feiras e mercados por não estar mais em condições de venda.
Projeto Acendra, metodologia e desenvolvimento técnico
O projeto Acendra começou com um estudo sobre substâncias capazes de agir como coagulantes naturais. A mucilagem do quiabo é rica em polissacarídeos, especialmente pectina, que possui propriedades de aglutinação de partículas sólidas. Em laboratório, os alunos extraíram a mucilagem de quiabos descartados, criando uma solução concentrada que foi aplicada a amostras de água de barreiro coletadas na região.
Testes e o resultado: apenas R$ 0,01 por litro de água
Os testes foram feitos no laboratório da escola, com acompanhamento técnico das professoras Lark Soany (Química) e Marisa Nobre (Geografia). Após a adição do coagulante natural, as partículas em suspensão na água começaram a se agrupar e sedimentar no fundo do recipiente. Após o tempo adequado de decantação, a água apresentava menor turbidez e melhor transparência. O grupo também realizou análises básicas de pH, presença de sólidos e aparência da água, com registros fotográficos do antes e depois.
O diferencial do projeto, além da aplicação local, foi o custo. Utilizando material descartado, o custo de produção estimado por litro de água purificada chegou a apenas R$ 0,01. Além disso, o resíduo gerado pela aplicação da mucilagem de quiabo não apresenta riscos ambientais e pode ser reaproveitado como adubo orgânico, fechando um ciclo sustentável de uso.
Centro de Excelência Dom Juvêncio de Britto, educação em tempo integral
O Centro de Excelência Dom Juvêncio de Britto integra o modelo de Ensino Médio Integral implantado pela Secretaria de Educação de Sergipe desde 2016. Esse modelo propõe uma formação mais ampla dos alunos, envolvendo não apenas disciplinas tradicionais, mas também projetos de vida, tutoria, acolhimento, eletivas e atividades práticas. Esse ambiente estimula o protagonismo estudantil e dá espaço para que os alunos identifiquem problemas reais e proponham soluções.
Dentro dessa estrutura, os estudantes participaram de oficinas, rodas de conversa e mentorias que auxiliaram no desenvolvimento do projeto. A ideia era que os alunos não apenas desenvolvessem um experimento científico, mas também compreendessem os impactos sociais, ambientais e econômicos da proposta. O projeto Acendra foi, portanto, resultado de uma formação multidisciplinar que envolveu conhecimentos de química, biologia, geografia e cidadania.
O protagonismo dos jovens estudantes
O protagonismo dos jovens estudantes foi fundamental. Eles conduziram todas as etapas, desde o diagnóstico inicial do problema até a divulgação dos resultados. Também participaram de entrevistas com a comunidade, levantaram dados sobre o consumo de água e elaboraram apresentações para eventos científicos. Essa vivência extrapolou os muros da escola e fortaleceu o vínculo entre conhecimento técnico e realidade social.
Apresentação do projeto Acendra em eventos e reconhecimento
Com os resultados documentados e a metodologia definida, os estudantes apresentaram o projeto na 2ª Feira de Conhecimento e Arte (Feconart), realizada nos dias 19, 20 e 21 de setembro. O evento reuniu diversas iniciativas escolares com foco em ciência, tecnologia e cultura. O Acendra foi destaque pela simplicidade da proposta aliada ao alto impacto social, recebendo elogios de professores, jurados e visitantes.
Logo em seguida, o projeto foi selecionado para participar da 38ª Mostra Internacional de Ciência e Tecnologia (Mostratec), entre 23 e 27 de outubro. A feira, reconhecida como um dos principais espaços de divulgação científica estudantil da América Latina, proporcionou aos alunos contato com pesquisadores, representantes de universidades e outros estudantes de várias partes do Brasil e do mundo. A participação em ambos os eventos ampliou a visibilidade do Acendra e fortaleceu a percepção de que a ciência pode ser feita com recursos locais, desde que aliada a uma metodologia rigorosa e um propósito claro.
Durante as apresentações, os estudantes explicaram o processo de extração da mucilagem, a aplicação prática do coagulante e os benefícios do método em comparação com os tratamentos químicos tradicionais. O projeto também levantou debates sobre o papel da escola pública no estímulo à pesquisa e à inovação, especialmente em regiões onde as condições sociais e ambientais exigem soluções urgentes e criativas.
Resultados e impactos observados
Os testes realizados com a mucilagem do quiabo mostraram que o método é eficiente para reduzir a turbidez da água de barreiro, deixando-a visivelmente mais limpa e adequada para etapas complementares de purificação, como fervura ou filtração. Embora o projeto não proponha substituir os sistemas de tratamento tradicionais, ele oferece uma alternativa viável para comunidades que não têm acesso regular à água tratada.
Estudantes criam tecnologia com quiabo que purifica água
Além da eficácia técnica, o projeto promove um duplo impacto: sanitário e ambiental. O reaproveitamento de quiabos descartados contribui para a redução de resíduos orgânicos nos mercados e feiras locais, ao mesmo tempo em que oferece um insumo útil para o processo de purificação. Os resíduos finais da decantação, compostos basicamente por matéria orgânica, podem ser utilizados como fertilizante natural, promovendo um ciclo de reaproveitamento.
A estimativa de custo também é um fator relevante. Com menos de um centavo por litro, o Acendra se apresenta como uma das soluções mais acessíveis entre as tecnologias sociais de purificação de água. Essa característica foi decisiva para despertar o interesse de outras escolas, instituições de pesquisa e possíveis parceiros.
Desafios e limitações identificadas na purificação da água
Embora os resultados sejam promissores, os próprios estudantes reconhecem que a proposta precisa passar por mais testes, especialmente em relação à eliminação de micro-organismos e à potabilidade plena da água. A etapa de coagulação é apenas o início do processo de purificação, e a água tratada com a mucilagem ainda deve ser fervida ou filtrada para assegurar a eliminação de bactérias e vírus.
Outro desafio é a padronização do preparo do coagulante. A qualidade da mucilagem pode variar conforme a maturação do quiabo, o tempo de armazenamento e o método de extração. Por isso, uma das próximas metas da equipe é criar um protocolo mais preciso e reprodutível, que possa ser replicado por outras comunidades com orientações simples.
Também há o desafio logístico de disseminação da tecnologia. O Acendra é, por enquanto, um projeto de pesquisa escolar. Para ser implementado em larga escala, será necessário desenvolver materiais de divulgação, capacitar agentes locais e, possivelmente, buscar parcerias com universidades e organizações não governamentais que atuem em segurança hídrica.
Possibilidades futuras e expansão do projeto
Com o reconhecimento alcançado e a consolidação dos primeiros resultados dessa tecnologia com quiabo que purifica água, os estudantes planejam expandir o projeto Acendra para outras comunidades do semiárido nordestino. A ideia é levar oficinas de formação a escolas e associações comunitárias, ensinando a produzir e utilizar o coagulante com segurança. Também estão em busca de parcerias institucionais para validar a eficácia do produto em diferentes condições de água e desenvolver um guia técnico de aplicação.
A equipe pretende ainda testar a mucilagem em outros tipos de fontes hídricas, como água de cacimbas e de poços rasos, comuns em regiões onde o lençol freático é superficial. A versatilidade da substância e sua origem natural indicam um campo amplo de experimentação, especialmente se houver colaboração com laboratórios universitários e centros de pesquisa.
O grupo também se mostra interessado em registrar a ideia como uma tecnologia social de domínio público, de modo a permitir que qualquer comunidade possa utilizá-la livremente, sem necessidade de patentes ou royalties. A proposta é manter a simplicidade do projeto como um de seus maiores trunfos, incentivando o uso responsável da ciência em contextos de vulnerabilidade.
O papel da escola pública e do ensino integral
O sucesso do Acendra reflete uma mudança de paradigma no modelo de ensino. Em vez de transmitir conhecimento de forma vertical, o Ensino Médio Integral busca envolver os alunos em atividades que façam sentido para sua realidade. Combinando teoria e prática, os projetos pedagógicos se tornam motores de transformação e espaços de protagonismo juvenil.
No caso do Centro de Excelência Dom Juvêncio de Britto, o ambiente escolar ofereceu aos estudantes estrutura de laboratório, orientação docente, carga horária ampliada e um currículo flexível. Esse conjunto de fatores foi essencial para que a pesquisa ganhasse consistência e pudesse ser apresentada em eventos científicos com credibilidade.
O projeto também demonstra que a escola pública pode ser um espaço de inovação e desenvolvimento científico, mesmo em regiões marcadas por limitações de infraestrutura. Com apoio adequado e incentivo à criatividade, os estudantes são capazes de propor soluções concretas para problemas complexos e contribuir diretamente para a melhoria das condições de vida de suas comunidades.
Visões dos envolvidos no projeto Acendra
Para Lucas Adib, um dos idealizadores do Acendra, a experiência ultrapassou os limites do laboratório. O contato direto com os moradores de Canindé de São Francisco durante as entrevistas revelou o impacto real da falta de água potável no cotidiano das pessoas. Segundo ele, participar do projeto foi uma mudança de perspectiva, que o fez refletir sobre desigualdade e responsabilidade social.
As professoras orientadoras também destacam a importância do projeto como ferramenta de aprendizagem. Lark Soany observa que a química, quando aplicada ao cotidiano dos estudantes, deixa de ser abstrata e passa a ter valor prático. Já Marisa Nobre ressalta o papel da geografia na compreensão das dinâmicas regionais, da distribuição hídrica e das políticas públicas de saneamento.
Os três estudantes continuam envolvidos com o projeto mesmo após as feiras científicas, atuando como multiplicadores dentro e fora da escola. A intenção é que outros alunos se inspirem na experiência e desenvolvam pesquisas próprias, criando uma rede de iniciativas com base no protagonismo juvenil e na ciência acessível.
Acendra é mais do que um projeto escolar.
O Acendra é mais do que um projeto escolar. É um exemplo de como a educação pode gerar impacto direto na vida das pessoas. Ao transformar um alimento descartado em uma tecnologia social de purificação de água, os estudantes de Sergipe mostram que ciência, quando conectada à realidade local, pode ser ferramenta de cidadania e inovação.
Os próximos passos incluem a ampliação dos testes, a formalização de parcerias técnicas, a produção de materiais educativos e o início de uma jornada de capacitação em outras comunidades. A meta é simples: garantir que mais pessoas possam ter acesso à água limpa de forma segura, barata e sustentável.
Em uma região onde os desafios climáticos ainda são uma constante, projetos como o Acendra oferecem uma alternativa concreta, desenvolvida por quem vive a realidade e entende suas urgências.
FONTE: CICLOVIVO
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